domingo, 30 de outubro de 2011

Léri-tri

(Publicado neste domingo 30/10 no Jornal de Londrina)

Mário, o garçom do Cemitério, depositou na mesa as duas brejas e o copo com os quais os três inseparáveis amigos recepcionaram Léri-bí, o santista com nome de música dos Beatles que tão educadamente havia solicitado autorização para entrar na roda dos maiores discutidores de futebol do mundo – assim, pelo menos, se proclamavam. Nem haviam servido o novo amigo e Luís César, sempre o mais curioso, intimou:

– Então, conta a história desse nome esquisito aí...

Os três amigos se viraram para Léri, todo ouvidos. O santista pegou o copo americano, observou um lado, o outro, fez jeitão de suspense e, como que desprezando a intimada, chamou o garçom e pediu para trocar o copo, apontando um suposto sinal de gordura acumulada próximo à linha do colarinho.

– É que meu pai era fã dos Beatles quando era moço e quando o Santos ganhou o segundo título mundial, em 63, disse que quando tivesse um filho colocaria o nome de Paul ou John. Os Beatles lançaram “Let it be” em 70. Eu nasci na semana do lançamento e daí meu pai inventou de dar a mim o nome do disco. Mas o cartório não gostou muito, ele teve que aportuguesar e então virei Léri-bí, porque, afinal, o Santos já era bicampeão mundial.

O pessoal curtiu a história e, de repente, deu aquela desanuviada no ambiente, que ficara meio carregado diante da possibilidade de Léri não ser tão legal quanto aparentou inicialmente. Mas a coisa começou a mudar quando Moitinha sugeriu que pedissem um frango a passarinho para salgarem a boca.

– Frango não curto muito não. Prefiro um porquinho. De preferência, de goleada.

Bracciola, que se levantava para tirar água do joelho, fingiu que não entendeu, engoliu seco e rumou para o banheiro, já pensando no troco. Na volta, tomou um gole generoso e pediu a palavra.

– Por falar em goleada, Léri, lembra daquele 6 a 0 na Vila, no Paulistão de 96?

– Ah, isso aconteceu quando vocês tinham time, né? Agora tô preocupado é com o dia 18 de dezembro. Vamos pegar o Barça em Yokohama e acho que vou ter de trocar de nome.

– Como assim? – perguntou Luís César, inocentemente.

– É, uai. Vou mudar para Léri-tri.

Bracciola coçou o queixo e olhou pra Moitinha, que, por telepatia, entendeu o recado. “Abre a roda, bobão, abre...”

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Léri-bí


(Publicado no domingo 23/10 no Jornal de Londrina)

Passava das onze, a atração principal já se preparava para subir ao palco do Cemitério (o de Automóveis, não o São Pedro) e os três amigos – inúmeras cervejas à mesa – ainda se atracavam em discussões daquelas típicas de bebuns, que vão e vêm, intermináveis.

Começaram com um tema bem leve, o envolvimento do ministro Orlando em denúncias de corrupção, para depois partirem para os mais heavy: as chuteiras verdes de Adriano e Fabuloso em treinos do Curíntia e do São Paulo, a cueca palmeirense de Hugo Hoyama no Pan e, para completar a lista barra pesada, a calcinha supostamente alvinegra de Juju Salimeni – inimiga mortal da nossa Nicole Bahls – no ensaio da Mancha.

Nesse caldeirão de assuntos que, se dependesse deles, ocupariam a pauta do Congresso Nacional e dos programas sérios de TV, os três amigos passaram a se divertir – agora em unanimidade – quando Luís César lembrou a declaração de Romário em Guadalajara, colocando os pingos nos is: “Messi primeiro tem que ser um Maradona antes de chegar a um Romário. E só depois cogitar ser um Pelé”.

Foi quando um sujeito trajando a camisa 10 dos tempos de Aílton Lira aproximou-se da mesa e interrompeu as gargalhadas.

– Olá. Tô ligado que vocês curtem futebol. Posso entrar na roda?

Os amigos foram pegos de surpresa. Ninguém nunca tivera a ousadia de interrompê-los daquele jeito. Entreolharam-se, sem saber o que responder. Moitinha interpelou:

– Quem é você?

– Léri-bí.

– Lélio o quê?

– Não é Lélio. É Léri. Léri-bí.

– Aquela música dos Beatles?

– Isso mesmo.

A mesa abriu nova sessão de gargalhadas. Jamais tinham ouvido apelido mais inusitado. Risos encerrados, Léri permanecia educadamente de pé, à espera de autorização. Bracciola tomou a iniciativa.

– Senta aí, meu. E conta a história desse apelido.

– Não é apelido. É meu nome mesmo.

Os três ficaram com cara de tacho. O papo prometia.

– Marião, duas brejas e um copo, please.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

O avesso do avesso


Tem gente que tem competência para colocar as coisas do avesso. É ou não é? O moleque que nunca viu um troço desses - como nessa charge que vi agora no Feice - não poderia pensar outra coisa. E pensar que redigi muita matéria em máquina de escrever. A que eu usei na Folha de Londrina está em casa. Uma Lexikon 80 verde, que passou por uma sessão completa na loja do Ninho (Centro Comercial) e está plastificada no balcão da cozinha, à espera de que eu compre móveis decentes e a instale num local definitivo. Estaria totalmente protegida em seu invólucro, não fosse um fura-bolo impertinente do Giovanni, que rasgou o plástico no setor sudoeste. Se fosse o mapa do Paraná, o furo sinalizaria Pato Branco, Palmas, por ali. E o piá do Marião ainda sentou o dedo no meio das teclas 3 e 4. As teclas encavalaram e assim ficaram, porque não há como enfiar o dedo pelo vão de cima para desencavalá-las. Se tivesse puxado para o Corinthians, como o pai, levaria uns petelecos, mas, como é Tubarão, decidi relevar. Quando a Folha informatizou a Redação, em 1992, se não me engano, eu, com 25, 26 anos, fiquei tão assustado quanto o Jota Oliveira, o Stélio. Que coisa absolutamente non sense para os dias de hoje: aprendemos o que é cursor, quantas vezes clicar para abrir um arquivo, como fazer para salvar o texto a cada uma ou duas linhas redigidas a fim de evitar que cometêssemos um erro e perdêssemos o texto. O básico do básico do básico, que já veio no chip dos que nasceram, sei lá, de 1995 para cá. Até funcionaria, a minha bichinha, se houvesse laudas. Claro, não dá para colocar um sulfite qualquer e teclar. Para operá-la, deve-se usar laudas, obrigatoriamente. De 20 linhas e 1.440 toques. Brancas como comandos pretos, como as da Folha. Ou com comandos verdes, como as da UEL. Assim manda o Código de Ética dos Jornalistas Já Quarentões e Ranzinzas. Fechado?

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

O poeta da rebeldia



Estou na 98ª das 240 páginas de “O poeta da rebeldia”. Espetacular o romance de José Antonio Pedriali sobre a vida do avô dele, Mário Romagnolli. Lembro que quando entrei na Folha de Londrina, em 1987, me deparava muito com pautas e menções aos pioneiros, as dificuldades impostas pelos tempos da colonização, a terra vermelha, mas eram sempre citações genéricas, repetitivas, quase um clichê. Ao ler o relato da chegada da família de Romagnolli (na foto, em primeiro plano, com Getúlio), em 1938, e os primeiros anos de adaptação a um lugar promissor, sim, mas inóspito por natureza, dadas as condições da época, daí passei a entender verdadeiramente o significado da palavra pioneirismo. A descrição feita por Pedriali do incêndio que consumiu a casa de Romagnolli e a luta dele para retirar os nove filhos e convencer a mulher – em estado catatônico – a afastar-se do fogaréu é espetacular. A narrativa ganha doses cavalares de emoção por conta da dúvida se o caçula Marinho, de três meses, havia ou não sido salvo. A narrativa leva o leitor a torcer com absoluto fervor por um final feliz. Não recordo de outro trecho de qualquer outra obra literária em que eu tenha sido levado a torcer tanto por um personagem. Fantástico, o livro de Pedriali. E não há indício nenhum de que vá arrefecer. Matá-lo-ei até o feriado, com certeza.

domingo, 9 de outubro de 2011

Niki Lauda


(Publicado neste domingo 9/10 no Jornal de Londrina)

Com a idade avançando, manda o bom senso que se anote assuntos que não se pode esquecer – ainda mais se o assunto em questão forem gozações entre torcedores de futebol. Bracciola fazia suas anotações ontem de manhã, antes de seguir para a Toca do Cateto, no Heimtal, onde saborearia a feijoada do Plantão Sorriso e, depois de uma dúzia de caipirinhas tamanho maracanã, certamente se engalfinharia com Moitinha e Luís César num canto a fim de exercitarem a sagrada arte da zoação.

No topo da lista, sem dúvida, ficou a revelação da nova tática dos bambis para jogos no Panetone: quando Rogério Ceni vai ao ataque cobrar faltas, os gandulas escondem as bolas de reposição para – em caso de algo dar errado – evitar que a defesa são-paulina seja pega com as calças na mão.

Bracciola pensava no segundo item da lista quando um mosquito atravessou a varanda a toda velocidade. Ele nunca tinha visto aquilo: a drosófila (Wikipédia serve para isso, rapá!) passou raspando o nariz, no sentido pia-churrasqueira. Voltou com tudo, fazendo curvas imaginárias, como se estivesse na Saint Devote ou na Tamburelo, a mais de 300 km/h.

– Ô Niki Lauda! Cuidado aí, meu...

Nem Senna, nem Schummy, nem o maluco do Hamilton: Niki Lauda foi o primeiro nome que lhe veio à cabeça para batizar aquele mosquito que misturava a velocidade do beija-flor com o barulhinho irritante do pernilongo. Ia e voltava, em hipérboles, parábolas e outros traçados nada cartesianos.

E o danado parecia a fim de tirar uma, porque passava sempre pertinho do rosto, às vezes pela nuca, como que desafiando Bracciola a acompanhar com os olhos aquela velocidade vertiginosa.

Quando o intruso parecia ter dado um tempo, Bracciola dedicou-se a anotar, finalmente, o segundo item da lista: o mais recente ranking da IFFHS, o esquisito instituto alemão de estatísticas de futebol, que trouxe o Curíntia na colocação de número... 171.

Foi então que Niki Lauda veio zunindo, como se estivesse em Interlagos, saindo do S do Senna e entrando com tudo no Mergulho, rumo à bandeirada final. A intervenção desconcentrou Bracciola, que demorou um tempão para lembrar o terceiro item da lista.

– Ah, é. A chuteira verde do Adriano...

sábado, 1 de outubro de 2011

Alma

(Publicado domingo 2/10 no Jornal de Londrina)

Na Sexta Sem Freio retrasada, Bracciola – com o humor hepático, por conta de mais uma derrota inexplicável na sinuca para o Aranha Duarte Júnior – sugeriu ao balconista do Bar do Jota que trocasse o som ambiente, pra lá de insosso, pelo velho e indivisível CD do Zé Ramalho.

Sim, aquele mesmo, capaz de, em um segundo, melhorar o astral do bar todo, do pinguço da vila ao professor da UEL, do artista de rua ao garçom empedernido, da garota de coturno ao garoto blasé. Não havia garrafa vazia ou bituca de cigarro que ficasse impassível aos primeiros acordes de Avôhai.

Tragédia: Brasil, o balconista, nunca ouvira falar de tal CD. Imagina-se que deva ter ficado nas mãos de um dos vários donos que passaram por lá nos últimos anos. Com mil raposas incendiárias: aquele CD – ao lado da sinuca e da biodiversidade – era a alma do Bar do Jota.

Tal qual a batida do Baiano, a canja do Toninho, o mocotó do Gerson, a feijoada do Jaime, o bolinho de carne do Lucílio e o xis-queca do Clube da Esquina, o CD do Zé Ramalho era a alma do Jota.

Equiparável à garra corintiana, à cadência palmeirense, ao arrebatamento flamenguista, ao ímpeto vascaíno, à raça gremista. Ao som daquela coletânea foram urdidas greves, iniciadas amizades, rompidas uniões estáveis. Mesas e cadeiras voaram, muita gente saiu do armário. A jiripoca piou e a onça bebeu água, mermão.

Sob aquele som, Bracciola entornou quantidades oceânicas de cerveja, assistiu a lutas do Maguila e do Mike Tyson e, pra lá de Marrakesh, roubou, na saída do banheiro, no dia da eleição do Lula, um beijo da garota mais cobiçada do pedaço, como quem cobra pedágio.

Quem terá sido o desalmado que ficou com aquele CD?