terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Troca-troca

O cidadão bota “Feira de Mangaio” na vitrola e, sozinho no quarto do som, começa a dançar como se conhecesse todos os passos do samba, do maracatu, do xaxado, do xote, do frevo, algo assim como um Carlinhos de Jesus melhorado, a mandar ver no sapateado, nas viradas, nos gracejos com os pés sem sair do lugar, os deslizados pra cá e pra lá, como se naquele momento fosse capaz de concatenar cada passo conforme a exata batida da melodia, e daí se dá conta de que mal dançava música lenta nos tempos de clube e de república, que perdeu não sabe quantas chances de novas namoradas por não saber – nem ter coragem – arriscar um passo sequer em roda de pagode cheia de bêbados, de só não ter passado vergonha na valsa de formatura da filha por saber que, ali, no salão, ninguém sabia dançar direito, se dá conta de que já tentou aprender uma vez, não deu certo, desistiu por achar que jamais levaria jeito pra coisa, mas ele está ali agora, enfeitiçado pelo acordeon do Sivuca, e acha que, de repente, não deve ser tão difícil assim, só precisa de uma ajudinha extraterrena, faz que olha pra cima e começa a conversar com Deus.
“Pô, Divino”, começa ele, sem levar muito a sério, “bem que o Senhor podia dar uma ajudinha aí, né...” E prossegue, entre o transe e a galhofa: “Se o Senhor acha que está muito tarde para aprender, tudo bem, eu também acho, mas o Senhor a gente podia negociar, sei lá, tirar alguma coisa para incluir isso, um lance de troca, sabe como é?”.
E não é que o Divino responde?
“E o que você daria em troca?”
Surpresa! E agora?
“Sei lá, vê aí, a gente podia...”
“A casa financiada?”
“Não, a casa não, sei lá, algo do tipo...”
“O carro novo, com som e tudo?”
“Também não. Vê aí algo que o Senhor me deu quando nasci e, agora, pode trocar...”
“Depois de tudo o que você aprontou, não deve ter sobrado muita coisa aí pra você trocar, mas deixa Eu ver, cabelo! Você aprende a dançar mas fica careca”.
“Cacildes... Tô fora, escolhe outra coisa”.
“Amizades... Vou te tirar uns amigos”.
“Melhor não, já não tenho muitos, não dá pra abrir mão de nenhum”.
“Já sei: lembranças! Tiro da sua memória lembranças tipo Ilha do Mel, a decisão do Brasileirão de 93 no Morumbi, aquela mulata de Arapongas... Já passou mesmo”
“Pelo amor de Deus, Divino, pára com isso!”.
“Assim fica difícil, você não abre mão de nada. Já sei: vou cortar um pedaç...”
“Êêêêê!!!”
“Calma, só um peda...”
“Êêê, pó pára!”
"Mas você nem sabe o que é, não me deixa terminar".
"Sei muito bem o que está passando nessa cabecinha aí".
“Larga de ser tonto, só um pedaci...”
“Nem vem!”.
“Pensa bem, um tiquinho de nada”.
“Ó o celular tocando, ó, vou lá, papo encerrado. Que conversinha, hein...”

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