domingo, 27 de março de 2011

Moleques

(Publicado no Jornal de Londrina em 23/03/2011) Jajá e Xuxa atiravam pão amanhecido na água na esperança de verem os tais bagres de meio metro que muito de vez quando dão as caras no corguinho do Vale do Rubi. Marcão vestia o gol de entrada com a rede. A outra rede descansava solenemente à beira do gramado, sob o olhar desdenhoso dos moleques que, como todos os moleques, gostam mesmo é de ficar fazendo embaixada e chutando a gol enquanto os mais velhos fazem o trabalho braçal para depois, durante o jogo, eles, os moleques, pegarem a bola e saírem driblando, ignorando quem está mais livre, firulando aqui e ali. No domingo anterior, Xuxa já tinha avisado: se viessem com firulas, levariam uns pontapés educativos. E nada da turma chegar. Já passava das nove e dali a pouco o sol do último domingo de verão estaria fritando mamona. Cansados da falta de respeito dos moleques, Xuxa – com a camisa tricolor de sempre – e Jajá puxaram o carro, decerto para o bar mais próximo. O negócio foi formar dois times de cinco e fazer uma pelada num pedaço de campo com golzinhos de tijolos. As redes ficaram lá, abandonadas ao sol. Enquanto alguém buscava uma bola além-córrego, mil lembranças passaram pela cabeça de Bracciola. O cheiro de bola nova. A primeira vez em que jogou bola com rede. Jogar com rede é completamente diferente de jogar sem rede. O futebol ganha outro status. Gostoso era chutar bola em gol com rede, nem que fosse sozinho e com rede de corda, como no campo da Grota. Corda grossa, que mal se mexia perante os chutes já razoavelmente fortes. Lembrou de quando era moleque e só podia assistir ao pai e aos tios jogando no campo do Peixoto. Lembrou dos jogos da Associação e da Calazans, que tinha na lateral direita o Djalma Ralo, que todo mundo – moleque ou adulto – tinha medo de encarar porque Djalma não chamava Ralo à toa. Moleque folgado ele tratava a pontapés exageradamente educativos. Bracciola vira muita gente sofrer nos cravos daquele botinudo. Acordou do transe ao levar mais uma caneta de um moleque do time adversário. Virou-se, enfurecido, decidido a ajustar as contas. Na hora agá, bateu um peso antecipado na consciência. Deixou pra lá. Saiu no meio do jogo, emburrado, chutando baldes, se baldes houvesse. Esses moleques...

quinta-feira, 17 de março de 2011

Meio a meio

(Publicado nesta quarta-feira, 16/03, no Jornal de Londrina)

Está lá para quem quiser ver: há três anos que o Gerson guarda no freezer uma garrafa de cerveja com rótulo da Brahma e tampinha da Antarctica. É uma relíquia que ele mostra aos frequentadores mais curiosos do bar e que, vira e mexe, instiga acirradas discussões entre quem curte cerveja e futebol – ou seja, 99,9% da população mundial.

Com Moitinha, Luís César e Bracciola, que pintaram lá para uma cumbuca de mocotó, não foi diferente. Afinal, eles são do tempo em que um sujeito que tomava Brahma não admitia uma Antarctica. E vice-versa. No máximo, uma Skol, que era fabricada na cidade e reconhecidamente muito boa.

Do tempo em que se era Senna ou se era Piquet. De vez em quando, um Nigel Mansell, desde que ele não atrapalhasse nossos títulos mundiais – como, de fato, nunca atrapalhou.

Do tempo em que se freqüentava Clube da Esquina ou Café Set – em tese, não dava para misturar bicho-grilo da UEL com boyzinho da Higienópolis. No máximo, um Carlão ou um Souza, points de todas as tribos.

Se tempos atrás alguém flagrasse o Carlão da Ótica tomando Antarctica no Bar do Lema ou o Alemão Schwartz tomando Brahma no Estoril, haveria motivo para sérios estranhamentos. A rigor, nem seria possível, porque Jorge e Lucílio conheciam muito bem a preferência de seus fregueses e jamais ofereceriam a eles outro tipo de cerveja.

Ao ver aquela estranha garrafa no Bar do Gerson, o são-paulino Luís César imediatamente evocou Vicente Matheus, que, na comemoração pelo título de 1977, teria agradecido a Antarctica por ter enviado aquelas braminhas para a festa corintiana. Moitinha embarcou na dele e, para gargalhada geral, desfiou algumas frases célebres do lendário presidente alvinegro.

– Quem está na chuva é para se queimar. Tive uma infantilidade muito triste. De gole em gole a galinha enche o papo. Não veio o Falcão, mas comprei o Lero-Lero.

Já Bracciola resolveu mexer na ferida. Encarou Moitinha e tascou, lembrando 1999:

– E aquela camisa meio Corinthians/meio Manchester, está guardada ainda?

Definitivamente, há certas coisas em que é melhor não mexer. Nem entre muito amigos.

O jardim fisolófico de Ricardo Sahão

(Publicado na seção Boas Histórias, do site da Sercomtel)



Quando começaram as insurreições no mundo árabe, e elas chegaram à Líbia, o londrinense Ricardo Sahão, logo detectou ali a mão da “indústria do combustível”, de olho no petróleo de Muammar Kadhafi. E, como toda ativista social que se preze, deu seu recado: colocou uma faixa defronte a pista de caminhada do Lago Igapó 2.

“Que os ventos da liberdade soprem sobre o Ocidente e o Oriente. Nós temos a internet, o telefone celular e a Verdade. Poder para o povo”, diz a faixa, em inglês, para que a tecnologia espalhe a mensagem mundo afora. Assinado: Sociedade Civil Organizada. De Londrina, é claro.

A faixa fica ao lado de uma placa de alumínio cujo recado – em bom português – foi uma resposta ao presidente estadunidense George W. Bush, que, ao invadir o Iraque de Saddam Hussein, alegou estar fazendo isso em nome da liberdade e da guerra ao terror. “Não em meu nome”, rebate a placa de Ricardo Sahão, que não tem a menor dúvida: tratou-se, ali, de mais uma obra dos ianques para garantir petróleo barato.

Com seus óculos redondos ao estilo de Lampião, os cabelos longos e prateados e um humor contagiante é que o médico Ricardo Sahão vai desempenhando aos 54 anos de idade – “com corpinho de 53” – sua postura de vida a favor da liberdade e da solidariedade, certamente as virtudes que ele mais admira.

Clínico geral formado pela Universidade Estadual de Londrina, nas horas de folga Ricardo Sahão está invariavelmente acompanhado de seu Guild – uma marca clássica de violão utilizada por muitos de seus ídolos musicais das décadas de 60 e 70.

Foi assim, com seu Guild a tiracolo, “para criar um clima”, que Sahão mostrou à reportagem talvez sua maior obra de uma revolução pacífica, baseada não em armas, mas em atitudes: o Jardim Filosófico, que o ativista montou na área externa da clínica de assistência médica que ele e o irmão Eduardo comandam no final da avenida Maringá, à beira do Igapó.

Em vinte e poucos metros quadrados de um barranco sombreado por duas sibipirunas, praticamente uma continuação da calçada, Ricardo Sahão instalou diversas peças que exaltam a vida e a liberdade – a maioria em ferro e alumínio, uma garantia de vida longa.

Assim é que uma “árvore da vida” traz, em meio aos galhos, pequenas placas ressaltando princípios como Solidariedade, Sexualidade, Amor, Paz e o lema da Revolução Francesa: Igualdade, Liberdade e Fraternidade. Ao lado, outra plaquinha, anexa a uma caixa de correios americana, US Mail, sugere que sejam postadas ali “cartas de paz e amor”.

Uma lápide, datada de 18/02/1957 (aniversário de Ricardo), informa: “Aqui jaz o mau humor, vítima de uma crise aguda de riso”. Acima dela, o Sino da Alegria, para ser tocado pelas pessoas que estiverem felizes. “Se você não estiver, você ficará.”

Um poste de ferro fundido ao estilo francês sinaliza ali a Esquina da Vida, formada pela Rua da Paz com a Rua do Amor. Fica bem ao lado de uma touceira de cana caiana, que esconde uma placa com um texto que é uma ode à biomassa, a verdadeira Revolução Verde que pode salvar o planeta.

Cinco placas de alumínio, lado a lado, trazem a letra e autoria de cinco canções que, para Ricardo Sahão, trazem mensagens universais de beleza e resistência. A primeira reproduz “Plegaria a un labrador”, de Victor Jara, o professor, músico, ativista político e dramaturgo chileno que foi preso pelo golpe militar de Augusto Pinochet e torturado num estádio transformado em campo de concentração até ser fuzilado a tiros.

A segunda placa traz a letra de “We Shall Overcome”, com a qual Charles Tindley embalou a luta pelos direitos civis nos EUA. Ao lado, “Guantanamera”, poema de José Marti que, musicado por Josito Fernandez, tornou-se uma das mais célebres canções da música cubana.

Para finalizar, duas canções brasileiras: a impagável “Caminhando”, de Geraldo Vandré, entoada milhões de vezes durante o regime militar, e “Asa Branca”, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, uma homenagem à bravura e às agruras sofridas pelo sertanejo nordestino.

Na verdade, há uma sexta canção, que mereceu um minimemorial, com a letra original em inglês e a tradução em português: “Imagine”, de 1971, com a qual, acredita Ricardo Sahão, John Lennon deu “um recado extremamente revolucionário” complementado pelo Fórum Social Mundial, para quem “outro mundo é possível”.

Eis o mundo de Ricardo Sahão.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Na bronca

(Publicado nesta quarta-feira 09/03 no Jornal de Londrina)


Nossos diabinhos elegeram programas diferentes para este Carnaval. O são-paulino Luís César quis matar as saudades do apartamento da família em Camboriú e apostou num feriadão ensolarado no litoral catarinense. O corintiano Moitinha há dias tinha resolvido que ficaria enfurnado nos botecos do Jardim do Sol e do Santa Rita, com saudade das piadas do Jair Gazolli.

Já o palmeirense Bracciola puxou o carro para São Paulo. Mesmo sabendo do desfalque anunciado do Gladiador, encasquetou de ver Palmeiras x Santo André. Ao vivo.

Sabendo que um antigo amigo estaria em Buenos Aires, esparramou-se no apartamento dele, na praça Benedito Calixto, em Pinheiros, pertinho – em termos paulistanos, claro – do Pacaembu, onde veria Valdivia em ação e, no dia seguinte, cumpriria algo que planejara há tempos: visitar o Museu do Futebol.

No sábado, encarou a chuva fina da Paulicéia, morreu com quarentão num ingresso e explodiu de raiva ao entrar no estádio e ser informado de que o Mago não jogaria. Engoliu a decepção e sofreu com a ruindade do time, que não saiu do 0 a 0.

– Se depender desse Michael Jackson, tamo morto.

No domingo, subiu a Teodoro a pé e caiu na praça Charles Miller. Pagou seis pilas e fez todo o percurso possível dentro do museu. Encantou-se com a coleção de objetos fotografados, com os modernosos painéis suspensos em homenagem aos craques que reinventaram o futebol-arte, curtiu a histórias das Copas e as imagens virtuais de todas as torcidas sob as arquibancadas reais do mais romântico estádio paulista.

Ouviu gravações selecionadas de Fiori Gigliotti e Osmar Santos. Reviu, nas cabines de imagem, o gol de Ivair contra o Corinthians em 1993. Já na última sala, divertiu-se com o fichário gigante dos times brasileiros. Deliciava-se com a extensa ficha do Verdão quando viu, de esguelha, a do Londrina Esporte Clube.

E o humor, que já não estava aquelas coisas por causa do tropeço de sábado, degringolou de vez quando leu lá que o Estádio do Café tem capacidade para 25 mil pessoas. Pô, 25 mil? Só?

Ficou de voltar lá e protocolar uma reclamação em três vias.

O português Jaime e seus isqueiros recarregados

(Publicado na seção Boas Histórias, do site da Sercomtel)



Contrariando as piadas de português, há em Londrina um “patrício” que, além de ótimo caráter, é observador e criativo. Pois só com características assim seria possível a Jaime Santos Mendes Gomes ter começado recarregar isqueiros descartáveis. E fazer disso uma significativa fonte de renda.

Das sempre frutuosas conversas com o saudoso doutor Turetta, protético que passava em seu bar para um copo de cerveja ou de vinho ao final do dia, Jaime extraiu a prática que o tornou o primeiro recarregador de isqueiros BIC do Brasil.

Curioso, abria e estudava aqueles isqueiros que ele e clientes usavam até acabar o gás. “Ficava mexendo, mexendo, mexendo... Queria arrumar um jeito de carregar de novo”, conta Jaime, português de Fátima – chegou ao Brasil em 1954, com três anos de idade.

A família aportou primeiro em Maringá, que, naquela época, tinha apenas sete anos de fundação. Em 1968, desembarcaram em Londrina. No dia 1º de abril de 1972, Jaime abriu seu primeiro bar no Centro Comercial, o “Lanches Cinelândia”, com acesso pela rua Souza Naves.

Há alguns anos, no mesmo Centro Comercial, ocupa um espaço ao lado, de frente para a rua Piauí e a Concha Acústica, onde durante muitos anos funcionou o Bar do Lema, tocado por Jorge Kadozawa e família.

Durava mais
De tanto investigar, Jaime descobriu uma maneira de recarregar os tais isqueiros, cuja propaganda falava que acendia “três mil vezes ou mais”. Passou a recarregá-los primeiro por meio de pequenos tubos de gás; depois, através dos tradicionais botijões de cozinha, de 13 quilos.

“Os meus isqueiros duravam bem mais”, garante Jaime. Pelas contas dele, a indústria imprimia uma carga de aproximadamente 70%, enquanto a recarga passava sempre dos 90% da capacidade do isqueiro.

A única desvantagem era o odor que o isqueiro reutilizado exalava, ou seja, o cheiro próprio do gás butano, que é daquele jeito mesmo, meio “fedidinho”, justamente para servir de alerta em caso de vazamento nas cozinhas de casas e restaurantes.

Convenhamos: para quem fuma 20, 30, 40 ou mais cigarros por dia, trata-se até de uma desvantagem extremamente pequena, praticamente imperceptível.

A desvantagem, aliás, parava por aí. O preço era o principal contraponto. “Cobrava a metade do que valia o original”, conta Jaime, que desempenhou a atividade de 1974 até os primeiros anos da década de 90. “Dava para pagar a água e a luz do bar e ainda sobrava algum.”

Lição
Jaime nem imagina quantos milhares de isqueiros chegou a recarregar, mas, além de muitos clientes locais, aparecia gente de cidades da região – Assai, Uraí, Porecatu – com quantidades industriais. “Tinha um motorista de ambulância que juntava 40, 50, e quando vinha para Londrina aparecia por aqui para eu encher tudo”, diz.

Nesses tempos de necessária vigilância ambiental, com legislações cada vez mais rigorosas em relação à destinação de resíduos, o português Jaime já dava lições de ecologia há quase 40 anos.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Travado

(Publicado nesta quarta-feira 03/03 no Jornal de Londrina)


O dia começara mal. Bracciola exagerou num alongamento e “espanou” um músculo qualquer pros lados da bacia. Resultado: ficou travado. Até as jogadas mais simples davam errado. Tentou cortar o zagueiro uma, duas, três vezes – e em todas a bola ficou com o adversário. As pernas não obedeciam direito, pareciam descalibradas. Dar um pique era motivo de sofrimento. Manja o Kaká depois da pubalgia? Então...

E assim transcorria a pelada de domingo no Vale do Rubi – uma lástima para o time sem camisa. Depois de receber o milésimo passe errado, tentou dar um bicão de desabafo e nem isso conseguiu; a bola aninhou-se numa touceira e não percorreu mais do que dois metros.

Saiu bufando de campo, sentou na sombra, tirou a chuteira e o meião e ofereceu a canela a milhões de pernilongos que aproveitaram o sol dos últimos dias para dar as caras. Seria o prenúncio de um Choque-Rei desastroso?

Com o Copo Sujo fechado, a turma foi tomar umas e outras no Bar do Edu, que, de tão democrático, tem até corintiano desfilando orgulhoso em carro verde. Bracciola tomou aquela meia dúzia de sempre até ser convidado para almoçar e ver o futebol com um casal de amigos. Ia rolar um empadão de camarão, tipo receita da vovó.

– Demorô!

Em frente à TV, Bracciola disfarçava a tensão dando risada ao ver o Morumbi se transformar num piscinão, com aquela chuva torrencial. E mais ainda ao ver o time do São Paulo perfilado para o Hino Nacional enquanto os palmeirenses se aqueciam no gramado. Provocação pura.

Quando Fernandinho acertou aquele pombo-sem-asa e abriu o placar, lembrou-se de Ticão, que, na época gloriosa do PSTC, quando todos louvavam Kleberson, dizia que tinha gente até melhor vindo aí... O empate, com Adriano Michael Jackson, mereceu uma senhora comemoração na sala do amigo.

Na segunda-feira, ficou sabendo da troca de “elogios”, via twitter, entre Alex Silva e Valdivia. E aproveitou para atazanar o amigo são-paulino Luís César, com um torpedo.

– Meu bambi querido, se precisar de ajuda pra escoar a água do Panetone e pra devolver a Taça das Bolinhas, tamos aih, é soh pedir.

Luis César achou melhor discutir isso cara a cara. No bar, é claro.