sexta-feira, 15 de outubro de 2010

A noite em que Severina salvou os filhos de um incêndio

(Publicado esta semana na seção Boas Histórias, no site da Sercomtel)

Antes de vir para Londrina, onde tornou-se torcedora fanática do Tubarão quando o time ainda nem tinha esse apelido, fanática a ponto de ouvir todos os jogos e todos os programas esportivos de todas as rádios, Severina Souza Theodoro protagonizou em Laje do Muriaé, divisa do Rio com Minas, um ato de heroísmo: salvou os três filhos pequenos e a si mesmo de um incêndio infernal.

E tudo graças a um bêbado. Um bêbado não: o maior bêbado da cidade, o Nicola, irmão de seo Abílio, o padeiro. Como todo bebum, Nicola, sempre que se encontrava naquele nível profissional de cana, desandava a falar. Tanto enchia o caneco que ninguém mais costumava dar bola ao que Nicola dizia – fosse verdade ou não.

O ano: 1954. Severina morava num sobrado já antigo, dos grandes. Na parte de baixo, a sala e a cozinha. Em cima, os quartos. Eram dois apartamentos. O outro era ocupado por dois irmãos. Embaixo ficavam ainda uma revenda de tratores e a sede da banda municipal. O imóvel ficava em frente à praça, e não muito longe do rio.

A tragédia
Naquela época, Severina morava praticamente sozinha com os filhos, de seis, oito e dez anos. Mário, o marido, vendedor de remédios, passava mais tempo em São Paulo e no Paraná do que em casa. E foi numa dessas que a tragédia aconteceu.

Aquela era noite de baile no salão da banda. A festança foi madrugada adentro, até que algum retardatário pra lá de marrakesh provavelmente resolveu abandonar um toco de cigarro aceso no recinto.

Isto é apenas suspeita. O fato é que lá pelas cinco da manhã Nicola, o bebum, começou a esgoelar, lá da praça, rumo às janelas de Severina: “Fogo, dona Severina! Fogo!”, repetia ele, com voz pastosa de pudim de cachaça. Severina chegou a comentar em voz alta: “Esse Nicola bebe e depois fica falando em fogo”.

Severina abriu a janela, daquelas janelas altas de casarão, certamente para passar um sabão no incômodo bebum, que insistia em gritar “Fogo, dona Severina”. Quando abriu a janela, Severina deparou com altas labaredas. O incêndio já consumira toda a parte de baixo e avançara sobrado acima. A escada já estava sob domínio do fogaréu.

Na coragem
Os meninos acordaram e aprontaram aquele berreiro. No desespero, Severina pegou o mais novo no colo e foi empurrando os outros dois em direção da escada. Desceram a dita cuja na mais pura coragem. Pouco depois de atravessarem a rua, a escada cedeu.

Mesmo assim, Severina voltou àquele inferno e puxou para fora a máquina de costura Singer que estava no começo da sala, bem perto da calçada. Foi o que restou: a camisola de dona Severina, os shorts dos meninos e a máquina de costura.

Homens faziam fila até o rio puxando baldes de água. Em vão: o sobrado já era. Os irmãos que moravam no apartamento ao lado chegaram a ficar sem saída. Pularam com colchões amarrados ao corpo.

Foram para a casa de parentes. Mário estava em Presidente Prudente, seu QG, de onde fazia as rotas para vender remédios. Apelaram à rádio Bandeirantes, de São Paulo, que passou a irradiar chamadas periódicas em busca de Mário Garcia Theodoro. Quem o visse que o avisasse de que a casa dele tinha sido destruída por um incêndio, mas que estava tudo bem com a família.

Rumo ao Paraná
Foi daí que Mário Thedoro antecipou o plano de mudar-se para o Paraná. Chegaram a Londrina no início de 1955. Assustada com o frio, dona Severina queria voltar na mesma hora.

Ficou, encarou a geada negra daquele ano, apaixonou-se pela terra e passou a usar a máquina Singer para costurar os shorts e as camisas que os filhos rasgavam em estripulias no buracão do Azevedo (atual Zerão) e nos campinhos de terra batida do Ipiranga e do Bom Sucesso, nos terrenos onde hoje estão, respectivamente, o ginásio do Moringão e o colégio Vicente Rijo.

Por causa do incendiário freqüentador do baile da banda, do bêbado Nicola e da coragem de dona Severina, o Rio de Janeiro perdeu três papa-goiabas e o Paraná ganhou três craques de bola: Carioca, Apolo e Lelei.

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