segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

As voltas que o mundo dá

O que a posse de Dilma, a unificação dos títulos brasileiros e o cowboy Billy The Kid têm em comum?





Texto: Rogério Fischer
Ilustração: Edvaldo Jacinto


Não se engane com o aparente clima de tranquilidade: muitos sofás de alta patente estremeceram quando Luiz Inácio Lula da Silva passou a faixa presidencial para Dilma Rousseff no primeiro dia de 2011. Os tremores ocorreram onde costuma repousar gente que trinta, quarenta anos atrás estava por cima da carne seca e, agora, resignada, se vê obrigada a assistir à posse, no mais alto cargo da República, de uma pessoa a quem combateu e a quem poderia ter eliminado sem dar maiores satisfações a ninguém.
Não se engane com o aparente clima de conformismo: muitas cadeiras de bairros pobres e chiques de São Paulo e outros estados estremeceram quando o presidente da CBF, Ricardo Teixeira, anunciou, em 22 de dezembro, a unificação dos títulos nacionais de 1959 a 1970. Os tremores ocorreram onde repousa gente que se achava o soberano da cocada preta e agora tem de engolir Santos e Palmeiras como os maiores campeões brasileiros da história.
Não se engane com o aparente clima de civilidade: muitas catacumbas e algumas mesas de escritórios de advocacia nos EUA estremeceram quando o governador do Novo México, Bill Richardson, anunciou, na última semana do ano, que em breve dará a palavra final sobre o processo que pede o perdão oficial a Billy The Kid. Os tremores ocorreram na consciência de gente que sempre considerou Billy um bandido sanguinário e agora se vê às voltas com a possibilidade de ele ter sido condenado à morte injustamente em 1881.
O que, afinal, une casos aparentemente tão distintos como o da presidente Dilma, do lendário cowboy americano e de dois dos maiores clubes de futebol do Brasil? A comprovação de que o mundo dá voltas – e a verdade pode não ser a mesma depois de 40, 50 ou 130 anos depois.
Há quatro décadas, Dilma Vana Rousseff era Luísa, um dos codinomes que utilizava como integrante da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares, organização de esquerda que combatia o regime militar no Brasil. A luta era absolutamente desigual: grupos clandestinos aqui e ali em ação contra o Exército e todos os organismos policiais nas mãos de quem tomara o poder pela força das armas.
E era justamente cuidar do arsenal da VAR-Palmares – fuzis, metralhadoras, revólveres, carabinas, pólvora e outros materiais próprios para fabricação de explosivos – uma das tarefas da guerrilheira Dilma, primeira mulher a comandar o Executivo na história do Brasil. Se a ação armada não conseguiu derrubar a ditadura, a articulação política deflagrada naquela época conseguiu vencer todas as eleições diretas desde o restabelecimento da democracia – com a desonrosa exceção da primeira, em 1989.

Tirando Fernando Collor, filhote da elite usineira nordestina, passaram pela presidência Itamar Franco (então vice, nome historicamente ligado à oposição), Fernando Henrique Cardoso (sociólogo), Lula (operário) e agora a engenheira Dilma. A ordem é cronológica e, também, de intensidade de ação política: uma raposa política mineira, um intelectual, um agitador de massas e, por fim, uma guerrilheira.

Os arquivos da ditadura

No rol de expectativas em relação ao novo governo, uma é particularmente instigante: como se comportará o Governo Dilma diante dos arquivos da ditadura? O País finalmente remexerá aqueles porões, trazendo luz a muitos casos até hoje insolúveis, como aqueles famosos desaparecimentos que até hoje afligem muitas famílias? Ou, ao contrário da Argentina, que recentemente condenou Jorge Videla, vamos seguir no caminho de uma transição pacífica, sem sobressaltos, sem mexer com gente de alto coturno?
A permanência do conservador Nelson Jobim no Ministério da Defesa parece ser uma sinalização clara dessa última opção. Mas é apenas uma sinalização. O que poderá sair da cabeça de uma mulher que esteve do outro lado da trincheira?
A escalada de Dilma ao poder é uma redenção – a mesma que a advogada Randi McGinn busca para Billy The Kid, que formou uma quadrilha para vingar o assassinato de um amigo rancheiro e infernizou o deserto americano e mexicano, distribuindo balas de revólveres para os xerifes e mimos às mulheres, o que o transformou numa lenda do Velho Oeste.
O suposto fato que motivou o pedido de perdão é que muitas das mortes atribuídas a ele não foram cometidas por Billy The Kid que, uma vez preso pelo persistente xerife Pat Garrett, escreveu quatro cartas ao governador Lew Wallace cobrando um acordo pelo qual o fora-da-lei ganharia o perdão por um homicídio em troca do testemunho em outro caso. Wallace teria quebrado a promessa.
O argumento da defesa é o de que o bandido foi mais honrado que a autoridade e, portanto, merece o perdão póstumo. Julgado e condenado à forca, Billy fugiu da prisão matando dois policiais e passou semanas desaparecido com a ajuda da população, até ser morto pelo xerife Garrett à queima-roupa em 13 de julho de 1881.
Já a decisão da CBF faz justiça ao Palmeiras – clube mais vitorioso do Brasil no século XX – e a Pelé, que, embora tenha sido eleito o Atleta do Século, nunca fora considerado campeão brasileiro. Ao reconhecer os títulos da Taça Brasil e do Torneio Roberto Gomes Pedrosa, a CBF atribuiu a Palmeiras quatro conquistas nacionais e ao Santos, seis, o que tornou ambos os clubes octacampeões brasileiros – acima, agora, do São Paulo hexa e do Flamengo penta.
A iniciativa altera as conquistas, os rankings e as estatísticas oficiais. E dá uma espécie de cala-boca a quem tratava com desdém a época de ouro do futebol brasileiro, por contemplar o período dos três primeiros títulos mundiais da seleção. Para se falar em história, é preciso ter bala na agulha.
(Publicado na Revista Real, de Londres, editada por Régis Querino)

Um comentário:

  1. Que artigaço!
    Foi mexendo aqui, juntando ali, resgatando ali e acolá e...vapt! Pôs no mesmo balaio tão diferentes personagens.
    A isso se chama, bala na agulha!

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