quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Apelidos


– E aí, Bielinha?

Olhei para trás com aquele misto de constrangimento e satisfação. O grito viera da esquina pela qual eu e mais quatro ou cinco pessoas tínhamos acabado de passar. O ruim é que mais meia dúzia de pessoas neste mundo havia acabado de descobrir o apelido de que menos gostei na vida. O bom é que partira de alguém muito chegado. Somente alguém da turma, mas da turma mesmo, aquela das farras da adolescência, poderia perpetrá-lo assim, do nada, à uma da tarde, numa esquina perto da praça matriz, quase em frente à farmácia do Zé Carlos, onde eu tinha ido comprar o Estadão – sim, em Guará, a gente compra jornal na farmácia.

Virei e logo vi o Chiquinho já estacionando a bicicleta, sorriso disfarçado, preparado para o cumprimento efusivo, ele que sabe que, embora não goste muito, nunca reagi mal ao apelido.

– E o Paraná? Tá lá ainda?

Fazia uns quinze anos que eu não via o Chico, cujo sobrenome, confesso, consternado, que até hoje não sei. Para nós, sempre foi o Chiquinho do Cartório, que nascera e vivera a vida inteira em frente ao Kaikan. A galera se separou em 1984. Cada um foi para um lado. Eu passei em Jornalismo em Londrina. O Carlinhos, em Engenharia de Alimentos na Unicamp. O Hélio Carlos, em Odonto, na USP de Ribeirão. O Jean, em Fisioterapia, em Uberlândia. E o Chiquinho, a vida inteira envolvido com cartório, passou em Direito, particular, em Franca. Éramos a Turma do Trapaleão, um desenho que passava na TV. O Hélio Carlos era o Trapaleão, por causa do cabelo armado e da polaquice. Os outros, não lembro. Mas só o meu apelido pegou: eu era o Biela, o Jacaré, aquele que tem um balde na cabeça.

Caramba, o Chiquinho era muito mais Biela que eu, mas o apelido pegou em mim. E todo mundo – menos o Carlinhos, meu primo em segundo grau – me chamava carinhosamente de Bielinha. Fazer o quê? O que mais dói não é o apelido em si, mas o fato de vir de um desenho animado do qual ninguém se lembra. Questionei várias pessoas nos últimos 25 anos e ninguém se recorda da tal Turma do Trapaleão.

Sair de Guará, na “Califórnia Brasileira”, para Londrina foi ótimo, num primeiro momento, para me livrar do apelido. Havia a quase certeza de que circularia impune. O quase fica por conta de um pequeno temor, que me acompanhou nos primeiros meses, de que alguém apareceria na república da Paraíba 322 ou no campus da UEL ou no Clube da Esquina ou no ponto de ônibus da Quintino e dispararia um “E aí, Bielinha?” assim, do nada. A lenda diz que já houve guaraense cruzando com guaraense em Nova Iorque, mas achava isso muito mais factível do que levar um “E aí, Bielinha” na fuça a 560 km de Guará.

O fato que é, como qualquer um, fui colecionando apelidos pelo caminho. Nos corredores do CECA, logo no início da faculdade, entre a mulherada descolada e os bichos grilos de Jornalismo, História e Sociologia, vieram os básicos: Rô e Roger, que nem apelidos devem ser considerados, posto que são variações do mesmo tema. Entre os colegas de república, logo pintou o Magrão, perfeito para um calouro careca de 1,86m e 55 kg. Uns três anos depois, quando já estava na Folha, veio o Rogê. Tudo culpa do Alberto Macedo, que, não sei por que, num de nossos porres diários, naquela etapa em que o disco enrosca na vitrola e o cara fica repetindo a mesma coisa, entrou numas de me chamar de Rogê Martiní – assim, com a sílaba tônica no final –, acho que por causa de uns martinis que eu tinha emborcado, e a coisa caiu na boca do núcleo duro do poder.

Primeiro, desconfio, pelo Zé Ganchão; depois, pelo restante dos que não prestavam: Bernardo, Jerê, Capucho, João... Até os sóbrios Jota Oliveira, Stélio Feldman e Isnard Cordeiro aderiram. Luiz Taques, que viera da sucursal de Campo Grande, inovou e passou a me chamar de Rogê Milá, por causa do atacante camaronês que aproveitou aquela bobeada do Higuita e eliminou a Colômbia da Copa da Itália. Eh, coitado do Escobar, isso sim.

Ao Gancho, devo outro apelido, mas que, felizmente, é utilizado apenas nas nossas relações bilaterais. Estávamos no Bar do Cebolinha, na Vila Ipiranga. Ele, Jerê e mais uma tropa dividíamos balcão com Dom Pablo, o homem que declamava Fagundes Varela a cada lavrado, quando vem subindo a João Cândido um bando de beldades da turma de Jornalismo, capitaneadas por Cris Agostinho e Cláudia Romariz, moradoras de uma república na Antônio Amado Noivo, perto do Evangélico. Ao passar pela esquina da Jorge Velho e ver aquele bando de jornalistas – eu ainda era estudante – e os bêbados de sempre, Cris vaticinou:

– Olha quem está ali, Cláudia, o Rogério Baixaria.

Pronto. Phodeu. Depois de uma semana de alugação, todos voltaram ao Roger, Rogê – menos o Gancho, que até hoje faz questão do Baixaria. Detalhes: Cris viria ser minha esposa, mãe da Natália. Dom Pablo, com mil raposas incendiárias, morreu de cirrose e hoje dá nome ao Gelobel do Parque Guanabara.

Bem, o tempo passa e a gente vai ganhando experiência e algum respeito. Os mais novos passaram a me chamar de Fischer, o que é ótimo para a auto-estima. Foi em Maringá, onde fiquei os últimos cinco anos, que ganhei o último – tomara que seja mesmo o último – apelido, dado pelo fotógrafo Henri Júnior, que passou a me tratar por um termo oriundo de uma história ocorrida também na Folha, vários anos antes, e que contara a ele num de nossos muitos churrascos.

Certo dia, final de década de 80, descia a escada da Redação com Jerê e mais alguns amigos, provavelmente para mais algumas cervejas no Bar do Lema, durante o expediente, quando falávamos sobre brancura no verão (acho que tínhamos visto umas fotos de umas gatas bronzeadas). Quando começamos a descer a escada, levantei a camiseta para mostrar a pança e mostrar que, de tão branco, estava parecendo um bigato. No que uma tiazinha da limpeza, que a tudo ouvira, ao melhor estilo Antonio Belinati, tascou um beliscão no meu pneu e exclamou:

– Bigatão!

Sem comentários. Mas, pela força do beliscão, ainda prefiro o grito do Chiquinho numa esquina movimentada de Guará. Dói menos.

7 comentários:

  1. Eu nem lembrava mais desse desenho.

    Bielinha, você é como eu. Lembra dos bons tempos com riqueza de detalhes.

    Abs,

    ResponderExcluir
  2. Rogê, adorei o texto e as lembranças! beijos
    Carinão (para poucos)

    ResponderExcluir
  3. Boas lembranças. Gostei da nostalgia quanto aos nomes dados pelos amigos. E o mais importante é que existe uma história em torno desses nomes. Sei bem o que é isso. Abs,
    Xerox (para a turma da UEL)

    ResponderExcluir
  4. tentei me livrar do bruka em londrina (deu certo os primeiros 6 meses) e aqui em sampa. nem fudendo. atpe minha mulher me chama assim.
    grande texto rogerio carlos.

    ResponderExcluir
  5. me lembro da turma do trapaleão. UHAUHAHUAHUA rogê vamu combiná, não era um desenho muito popular né??

    ResponderExcluir
  6. É, Peixe... a do Bigatão é a pior, hehe... Abração!

    ResponderExcluir
  7. Sei bem o que é ganhar e dar apelidos.
    "Polaca" ganhei de vc. "Galega" do Henri Jr e outros que "prefiro não comentar"...rsrsrs.

    ResponderExcluir