O domingo amanheceu bonito praca, perfeito para se comemorar o aniversário de 90 anos de alguém. Passara o sábado projetando a comilança com a qual eu sonhara a semana inteira. Imaginava todas aquelas travessas passando de mão em mão, aquela converseira cheia de risadas. Levantei às 7h30. O sol já estava ardido. Parecia alto verão. No corredor da sala, topei com dona Maura ainda de pijama. Minha mãe e eu havíamos saído da cama no mesmo minuto. Passamos pela sala, onde meu irmão dorme quando estou em casa – ele não suporta os roncos. “Você compra o pão?”, perguntou dona Maura, colocando água no fogo. “Não”, respondi. “Vai no Ismael, então.” Ela sabe que não vou ao supermercado do Emílio, com quem briguei aos 14, 15 anos de idade, e não nos falamos mais. Minha família faz compras naquele mercado há pelo menos 30 anos, desde que ainda era tocado pelo Webe, o pai do Emílio. Mais uma turma de libaneses que chamávamos de turcos. (Turco cebolento/bate a bunda no cimento/pra ganhar mil e quinhento). O mercado fica na esquina da rua. Então subi mais uma esquina, até a padaria do Ismael. No caminho, cumprimentei cabo Jorge e o próprio Webe, que conversavam. No Ismael, a Rita, mulher dele, batia papo com Renatinho Siqueira, o cara que, pelo que me contaram, botou ordem na Santa Casa. Agricultor, ele não sai do escritório onde meu pai vende adubo e sementes. Rita é irmã do Djalma, que foi meu treinador, no infantil da Guaraense. Anos depois deixei de lado o time do clube da cidade e passei a integrar o Vila Nova, time de vila que copiara o nome e o uniforme – nem imagino por que – do Vila Nova de Goiás, com aquela jaqueta cujo vermelho fica entre o vermelho vivo do América carioca e o bordô do Juventus. E foi no Vila Nova que passei quatro anos viajando de caminhão para jogar pela região. Só para Ituverava, que é pertinho, íamos de Kombi. Em Buritizal, entramos em campo com o alambrado apinhado de gente, mas não houve jogo porque o adversário não apareceu. Em Morro Agudo, fiz um golaço de falta, por cima da barreira, à la Zico, num estádio vazio. Na Usina Junqueira, que começou como usina e terminou virando cidade, na barranca do Rio Grande, divisa com Minas, fiz o jogo mais duro de que me lembro. Em Pioneiros, até hoje distrito de Guará, jogamos num campo de grama impecável tratado com bosta de vaca e que tinha uns duzentos cupinzeiros espalhados por todo lado. Mas naquela hora, na padaria do Ismael, eu só pensava no que teria pela frente naquele domingo ensolarado: o GP belga em Spa-Francorchamps, o aniversário da dona Zizinha e, depois, o pega do Parmera com o São Paulo no Panetone – aquele bolo cheio de frutinhas que eles chamam de Morumbi. A Fórmula 1 eu atribuo a um antigo hábito, mas o jogo da tarde tinha tudo a ver com a aniversariante, pois foi da vó Zizinha, Tizziotti da gema, que herdamos a preferência clubística, embora minha vó, assim como minha mãe, goste de dizer que o Parmera vai perder ou que o Curintia vai ganhar sempre que quer atazanar os homens da famiglia. Dona Zizinha completou 90 anos um mês e meio depois de Oberdan Cattani, o goleiro que segurava uma das pontas da bandeira nacional que o Verdão empunhou ao entrar no gramado do Pacaembu em 1942, no jogo decisivo contra o São Paulo. Os torcedores do São Paulo – que quis aproveitar o clima contra os adversários do Brasil na guerra para tomar para eles o Palestra Itália – vaiaram. O Palestra jogaria pela primeira vez com o nome de Palmeiras, ganhou o jogo e foi campeão – o rival abandonou o campo. Se os mais conservadores o perdoarem por ter enfrentado o Palmeiras duas vezes durante uma curta passagem pelo Juventus, Oberdan vai ganhar um busto no Parque Antártica, para ficar eternamente ao lado de Ademir da Guia, Junqueira e Waldemar Fiúme, o jogador que, garantem, passava meses sem errar um passe. Comi dois pães com manteiga e café, assisti a mais uma trapalhada do Rubinho e segui para a casa da vó, a cinquenta passos da nossa. A Ciló, que passara a semana nos preparativos, divertia-se como pinto no lixo tirando pratos da prateleira, ajeitando mesa, refogando arroz, checando as panelas no fogão de lenha. Ciló, que mora numa casa contígua à da vó, pipocara em relação ao plano inicial, que era de comprarmos do Diomedes – tio também, mas de parte da minha mãe – um tucura com séculos de linhagem caipira para devorarmos no dia do aniversário. Achou que era muita coisa e preferiu comprar uns pedaços de pernil em mercados mesmo, mas cumpriu a promessa de matar, limpar, temperar e cozinhar cinco frangos do terreiro do João Luís. Seis na verdade, mas um ela já tinha feito no sábado para o próprio João Luís. Enquanto eu e o primo Emerson ajeitávamos as cadeiras, meu pai ficava lamentando que não tivéssemos feito a festança no sítio dele, na Grota. Como aquela já eram favas contadas, combinamos que o aniversário de 100 anos da vó seria lá. Bebericamos umas cervejas antes da refestelança. Me diverti ouvindo o Vadim – o sobrinho mais velho da dona Zizinha, 73 anos – contando velhas histórias de Guará para a Evelyn. Gostei mais daquela segundo a qual o Rondon, colégio em que eu fiz o colegial, ia ser construído pelo Estado numa área próxima do cemitério, mas acabou do outro lado da cidade porque os vereadores da época, que teriam de aprovar a doação do terreno, alegaram oficialmente que perto do cemitério havia muitas mulas sem cabeça. À mesa, defini a seguinte estratégia: vou ficar só no frango e na polenta, e ignorar pernis – havíamos beliscado-os, durante a cervejada – e arroz branco e arroz carreteiro (exigência absurda do João Luís) e lasanha e feijão. A alegação era pragmática: arroz, feijão, lasanha e porco de granja a gente come a hora que quiser; frango caipira com polenta feitos em fogão de lenha, nem tanto. Comi tanto que, dizem as más línguas, daria para construir uns oito frangos com os ossos que eu empilhei. Depois do rango, o Luís Henrique, que concedeu ligeiro interregno à dieta, apareceu exibindo uma lata de sorvete com mais satisfação do que Carlos Alberto com a Jules Rimet no México – a comparação foi dele. Consumado o estrago, fomos para a mesa de dentro para colocar a fofoca em dia, enquanto a Juliana lavava umas travessas na pia e meu pai se ocupava dos pratos e talheres sujos no tanque. Em todos os almoços na vó, meu pai sempre lava os pratos e talhares, e copos também. Já estou ciente de que essa herança é minha. Empanzinado, joguei-me no sofá de casa para ver o Parmera empatar com os bâmbis. Xinguei o time durante os 90 minutos, tomei outro banho e voltamos para a casa da vó, para os 90 que realmente interessavam. A meta era matarmos o que sobrara do almoço. Não conseguimos, posto que era trabalho para um bando de capinadores, e me despedi da turma. Dona Zizinha me desejou boa viagem a Londrina e fui correndo para a casa para escrever sobre esse dia gostoso. E, catzo, só agora me lembrei de ver o resultado do Tubarão na Série D. Vou lá no Londrix conferir. Qualquer que tenha sido o resultado, tomara que no outro final de semana, em casa, a gente engula a Chapecoense. Estou com saudade do Estádio do Café. Combinado, Cláudio Osti?
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