quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

No salão do Jurandir


Pra começar bem o ano, dei aquela tosada na juba. Cortei menos do que eu queria, influenciado pelo meu pai, que sugeriu: "Corta só as pontas". Meu pai sempre gostou do cabelo meu e do meu irmão compridos. Desde criancinha. Sempre achava imprópria a hora de cortar. Que ainda era cedo. Enfim, como não sou mais criancinha, me dirigi ao salão do Jurandir pontualmente às 15h30. Antigamente era por ordem de chegada; hoje é com hora marcada. Assim como no primeiro semestre, quando tinha cortado cabelo pela última vez, seo Horácio ficou na espera. Se coincidências forem bons prenúncios de ano novo, então comecei bem.


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Barbearia, sabe como é, é lugar de converseiro. No salão do Jurandir reúnem-se as línguas mais afiadas do oeste - a do dono, inclusive. Desta vez, porém, o clima estava ameno. Quando cheguei, o cara que estava na cadeira ficou praticamente mudo. O Horário também não é de jogar conversa fora. O jeito foi ficar urubuservando, e arriscando algum papo com o Jurandir.


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No salão, de uns 20 metros quadrados, chamam a atenção algumas fotos de família, duas ou três flâmulas (argh!) do São Paulo, uma velha Frigidaire vermelha do tamanho do Maguila e um pequeno cartaz, ao lado do espelho, com os seguintes dizeres: "Salão do Jurandir. Sensacional promoção. Corte o cabelo aqui e concorra a uma viagem a pé para o Beto Carreiro World com direito a dois acompanhantes".


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Já tinha passado o olho no caderno de esportes do Agora - o matutino que substituiu o Jornal da Tarde e o Notícias Populares - quando vi uma pilha de revistas na parte de baixo da bancada do espelho. Me dirigi à pequena montanha com a esperança de encontrar alguma coisa que presta. Doce ilusão. Só tinha umas Vejas antigas e coisas assim. Comentei com o Jura sobre um sofá que ele tinha no antigo salão, que ficava ainda mais perto de casa. Era uma estrutura de madeira com umas almofadas. Havia um gavetão onde encontrávamos, discretamente, revistas de mulher pelada. Era preciso atingir determinada idade e, sobretudo, um grau de liberdade com o Jurandir para se ter acesso àquelas preciosidades. Havia um outro montinho, mais escondido, com as revistinhas de catecismo - as mais almejadas, mas de acesso muito mais restrito.


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Aproveitando a deixa, Jura lembrou de uma história pessoal. Naquele tempo, coisa de 30, 35 anos atrás, ele tinha ido a Ituverava - terra de Gustavo Borges, Marcelo Tas, Vitor Martins, então comarca de Guará - para levar documentos ao INSS. Estavam todos num envelope amarelo, dos Correios, quando Jurandir, aos 48 do segundo, antes de entregá-lo à funcionária, resolve dar uma última olhada e, embaixo de toda a papelada, puxa uma capa de revistinha de catecismo - daquelas, explícitas ao extremo, boca naquilo. "Que alívio", contou Jurandir. "Naquele tempo, a mulher do INSS certamente teria chamado a polícia."


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Dei a vez ao Horácio e segui para casa, ainda imaginando a cara da funcionária do INSS se a história tivesse sido outra.

Um comentário:

  1. Sua crônica de barbearia é um libelo. Flâmulas? Não ouvia isso há pelo menos três décadas.
    O "catecismo" foi obra de Alcides Caminha, funcionário do Banco do Brasil (!), que ficou no anonimato durante muitos anos. Ele desenhava longe dos olhares curiosos e sedentos da meninada. Em Teodoro Sampaio, o exemplar era ouro e ai daquele que ficasse um dia a mais com o exemplar. Da série: Retratos da Infância. Um feliz 2010, amigo Rogério.

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