Sou a prova viva de que o tempo muda referências de uma pessoa perante uma comunidade. Mesmo referências que pareciam cravadas para sempre. De dezembro de 1965, quando eu nasci, até poucos dias atrás, eu era conhecido na minha cidade natal por Fichinha. Não, nunca fui comparado a uma ficha pequena. O correto seria, até, escrever Fischinha. Sou neto do Paulo Fischer e filho do José Moacyr Fischer, mas, sabe como é, a linguagem coloquial transforma as pronúncias, ainda mais se tratando de pequenas cidades do interior. Imagine, então, nesse pedaço de terra que fica a meio caminho – 80 km de cada lado – entre Ribeirão Preto e Uberaba.
Resumindo, somos paulistas quase mineiros, e as palavras, aqui em Guará, têm a pronúncia simples e simplificada da nossa gente. E é esse comportamento que transforma um Fischer num Ficha. Na real, sou neto do Paulo Ficha e filho do Zé Ficha. E filho de Ficha é... Fichinha, claro. Quando moleque, ia no açougue e alguém me atendia: “O que vai hoje, Fichinha?” Chegava na padaria e... “Fala, Fichinha. E o pai, como vai?” No mercado: “Marca pro Ficha, Fichinha?”
No futebol amador, quando o Vila Nova entrava em campo, a escalação invariavelmente era Cidão da Bicicletaria; Luizão, Luís César, Dudi e Agenor; Rogério, Nenê e Luís Barriga; Joaninha, Santana e Moitinha. “Quem é aquele polaco ali, de volante?”, alguém sempre perguntava nas arquibancadas, querendo saber quem era aquele alemão no meio daqueles pretos todos. “O fii do Ficha”, outro respondia.
Depois de 25 anos no Norte do Paraná, estou em Guará há umas três semanas, curtindo a comida da mãe e a vida gostosa e sossegada daqui antes de voltar para Londrina e recomeçar a batalha. E, nessas férias a que me dei direito, estou, é claro, visitando lugares novos e principalmente revisitando os velhos – bares, de preferência. Onde quer que eu vá, as pessoas me recepcionam com entusiasmo, contam histórias em alto e bom som, em especial dos tempos do Vila Nova, e, diante de um espectador que aparente não estar entendendo de quem se trata, logo vem a referência: “É irmão do Luís Henrique!”
Esse meu irmão, vou te falar. Anda mais conhecido que andar pra frente. Boleiro aposentado, formou-se em Agronomia perto dos 30 anos e ajuda meu pai no escritório de venda de adubo e sementes, com grandes dificuldades, diga-se, numa região que abandonou os grãos e entregou-se à cana. Nunca colocou uma gota de álcool nem um milímetro cúbico de fumaça na boca, mas conhece cada canto – inclusive os mais ermos, se é que você me entende – da cidade.
Aos 17 anos, sem que tivesse passado convencionalmente pelas categorias de base, foi levado à Ferroviária de Araraquara pelo Betão, guaraense que se destacou no Botafogo de Ribeirão, integrou a Seleção Brasileira de Novos e aposentou-se em Natal, onde é ídolo até hoje da torcida do ABC. Foi treinado pelo Bazani, lenda em Araraquara, por ter integrado o time da Ferroviária com Dudu, o eterno companheiro de Ademir da Guia no meio-campo da Academia palmeirense.
Disputou, o meu irmão, alguns Campeonatos Paulista de Aspirantes pela Ferroviária e, assim, jogou em todos os grandes estádios de São Paulo. Teve passagens pela Platinense, de Santo Antônio da Platina-PR, levado por um diretor que nunca lhe pagou um centavo de salário. Da última vez que tive notícias desse cabra, um advogado cujo nome não me lembro, graças a Deus, era vice-presidente da Federação Paranaense de Futebol, nesse mundo em que os canalhas se dão bem. Luís Henrique passou ainda pelo São Paulo, de Avaré, e Internacional, de Bebedouro, até pendurar as chuteiras, com problemas na visão e nos joelhos.
Certa vez, quando vim visitar a família, certamente aproveitando um feriadão qualquer, entrei em casa e logo vi um cinzeiro, grande, com o distintivo do São Paulo, no barzinho da copa, e já fui ralhando: “Mas que troço é esse aqui?”, ao que meu irmão imediatamente esclareceu: “É de Avaré, brother”. Ah, bão! Mesmo assim, sempre olhava torto para aquele cinzeiro.
Grandão, com uma barriga proeminente pelas quantidades industriais de chocolate, sorvete e refrigerante que ingere todos os dias, puxou mais o Tizziotti da vó que o Fischer do vô. Fisicamente, inclusive. A vó Zizinha é da tribo dos Pavarotti, aqueles italianos atarracados de cabeça redonda como uma melancia. É do tipo brincalhão, sorridente, a voz sempre uns decibéis a mais, típica de todo bom italiano. As conversas dele com a tia Ciló, por exemplo, são tão silenciosas e disciplinadas quanto um bando de maritacas. Faz amizades com muita facilidade, o Zenrique.
Quatro anos mais velho, sou o inverso dele. Fui o único neto que puxou o Paulo Fischer – magro, alto, caladão, como todo bom alemão. Sou capaz de morar anos sem conhecer o nome do vizinho da direita, da esquerda e da frente, do dono da mercearia da esquina e da padaria do outro quarteirão. A última vez que isso ocorreu foi em Maringá. Perguntem ao pessoal das ruas Cariovaldo Ferreira e Saint Hilaire. Fiquei quatro anos na primeira e um ano na segunda e, apesar disso, quase ninguém lá sabe o meu nome e o que faço da vida, mas é bem capaz de um monte de gente lembrar-se do nome do Luís Henrique, mesmo que ele não tenha me visitado mais que duas vezes. Do Zé Ficha então...
Assinado: irmão do Luís Henrique.
Resumindo, somos paulistas quase mineiros, e as palavras, aqui em Guará, têm a pronúncia simples e simplificada da nossa gente. E é esse comportamento que transforma um Fischer num Ficha. Na real, sou neto do Paulo Ficha e filho do Zé Ficha. E filho de Ficha é... Fichinha, claro. Quando moleque, ia no açougue e alguém me atendia: “O que vai hoje, Fichinha?” Chegava na padaria e... “Fala, Fichinha. E o pai, como vai?” No mercado: “Marca pro Ficha, Fichinha?”
No futebol amador, quando o Vila Nova entrava em campo, a escalação invariavelmente era Cidão da Bicicletaria; Luizão, Luís César, Dudi e Agenor; Rogério, Nenê e Luís Barriga; Joaninha, Santana e Moitinha. “Quem é aquele polaco ali, de volante?”, alguém sempre perguntava nas arquibancadas, querendo saber quem era aquele alemão no meio daqueles pretos todos. “O fii do Ficha”, outro respondia.
Depois de 25 anos no Norte do Paraná, estou em Guará há umas três semanas, curtindo a comida da mãe e a vida gostosa e sossegada daqui antes de voltar para Londrina e recomeçar a batalha. E, nessas férias a que me dei direito, estou, é claro, visitando lugares novos e principalmente revisitando os velhos – bares, de preferência. Onde quer que eu vá, as pessoas me recepcionam com entusiasmo, contam histórias em alto e bom som, em especial dos tempos do Vila Nova, e, diante de um espectador que aparente não estar entendendo de quem se trata, logo vem a referência: “É irmão do Luís Henrique!”
Esse meu irmão, vou te falar. Anda mais conhecido que andar pra frente. Boleiro aposentado, formou-se em Agronomia perto dos 30 anos e ajuda meu pai no escritório de venda de adubo e sementes, com grandes dificuldades, diga-se, numa região que abandonou os grãos e entregou-se à cana. Nunca colocou uma gota de álcool nem um milímetro cúbico de fumaça na boca, mas conhece cada canto – inclusive os mais ermos, se é que você me entende – da cidade.
Aos 17 anos, sem que tivesse passado convencionalmente pelas categorias de base, foi levado à Ferroviária de Araraquara pelo Betão, guaraense que se destacou no Botafogo de Ribeirão, integrou a Seleção Brasileira de Novos e aposentou-se em Natal, onde é ídolo até hoje da torcida do ABC. Foi treinado pelo Bazani, lenda em Araraquara, por ter integrado o time da Ferroviária com Dudu, o eterno companheiro de Ademir da Guia no meio-campo da Academia palmeirense.
Disputou, o meu irmão, alguns Campeonatos Paulista de Aspirantes pela Ferroviária e, assim, jogou em todos os grandes estádios de São Paulo. Teve passagens pela Platinense, de Santo Antônio da Platina-PR, levado por um diretor que nunca lhe pagou um centavo de salário. Da última vez que tive notícias desse cabra, um advogado cujo nome não me lembro, graças a Deus, era vice-presidente da Federação Paranaense de Futebol, nesse mundo em que os canalhas se dão bem. Luís Henrique passou ainda pelo São Paulo, de Avaré, e Internacional, de Bebedouro, até pendurar as chuteiras, com problemas na visão e nos joelhos.
Certa vez, quando vim visitar a família, certamente aproveitando um feriadão qualquer, entrei em casa e logo vi um cinzeiro, grande, com o distintivo do São Paulo, no barzinho da copa, e já fui ralhando: “Mas que troço é esse aqui?”, ao que meu irmão imediatamente esclareceu: “É de Avaré, brother”. Ah, bão! Mesmo assim, sempre olhava torto para aquele cinzeiro.
Grandão, com uma barriga proeminente pelas quantidades industriais de chocolate, sorvete e refrigerante que ingere todos os dias, puxou mais o Tizziotti da vó que o Fischer do vô. Fisicamente, inclusive. A vó Zizinha é da tribo dos Pavarotti, aqueles italianos atarracados de cabeça redonda como uma melancia. É do tipo brincalhão, sorridente, a voz sempre uns decibéis a mais, típica de todo bom italiano. As conversas dele com a tia Ciló, por exemplo, são tão silenciosas e disciplinadas quanto um bando de maritacas. Faz amizades com muita facilidade, o Zenrique.
Quatro anos mais velho, sou o inverso dele. Fui o único neto que puxou o Paulo Fischer – magro, alto, caladão, como todo bom alemão. Sou capaz de morar anos sem conhecer o nome do vizinho da direita, da esquerda e da frente, do dono da mercearia da esquina e da padaria do outro quarteirão. A última vez que isso ocorreu foi em Maringá. Perguntem ao pessoal das ruas Cariovaldo Ferreira e Saint Hilaire. Fiquei quatro anos na primeira e um ano na segunda e, apesar disso, quase ninguém lá sabe o meu nome e o que faço da vida, mas é bem capaz de um monte de gente lembrar-se do nome do Luís Henrique, mesmo que ele não tenha me visitado mais que duas vezes. Do Zé Ficha então...
Assinado: irmão do Luís Henrique.
excelente
ResponderExcluirAí, Rogério, vai nessa mesmo. Já estou te seguindo. Sempre.
ResponderExcluirRogê, que bão que você resolveu abrir um blog. Vou te confessar que não vou ler os textos de futebor, embora eu tenha imensa consideração por você e pelo Parmera. Mas este aqui, eu adorei! beijos
ResponderExcluirValeu, Peixe! Gostei do brog... dá até vontade de fazer umas andanças pelo interiorrr....
ResponderExcluirÉ isso ai, amigão (e graças ao Gilmar Mendes & Cia, agora tbm colega de cozinha...)... vamô tomá umas quando vosmecê vortá pressas banda...
* ah, e pra não perder o gancho... rsrs... desde o finalzinho do ano passado, com o gordo no Timão, não comemorava tanto uma contratação como foi a do Obina, hehehe... e uma piadinha: o Obina só anda de TAM... se fosse de Gol perdia todos... rsrsrrs