terça-feira, 23 de junho de 2009

Você não vale nada, mas eu gosto de você


Respeito quem considera desnecessário o diploma universitário para o exercício do jornalismo. Tenho amigos de alto gabarito que pensam assim. Paulo Briguet, de Londrina, acha o diploma uma piada. Para ele, todas as profissões humanistas não deveriam depender de formação acadêmica. “O resto é corporativismo e fanatismo”, acredita ele, segundo texto postado em seu blog, http://www.tipos.com.br/. Escritor de primeiríssima qualidade, Briguet nomina uma série de grandes jornalistas sem diploma, como os “locais” Widson Schwartz e Jota Oliveira. Pelos exemplos, assino embaixo.

José Fernando, de Curitiba, é outro amigo que defenestra o diploma. Diz ele, em seu blog http://www.magnacuritiba.blogspot.com/, que nunca distinguiu os colegas com ou sem diploma, mas em outros dois grupos: os que sabem e os que não sabem escrever. “Como são poucos os que pertencem ao primeiro grupo, sempre me posicionei contra o diploma”, afirma ele, acrescentando: “Sempre defenderei o sagradíssimo direito de expressão de quaisquer pessoas que tenham condições para tal. Esta é a liberdade que importa”, vaticina o Zé, que, além do jornalismo, domina o latim como poucos. “O resto é o choro dos reacionários e medíocres.”

Valho-me desses dois colegas primeiro pela liberdade que acredito ter com eles e, segundo, para elaborar um raciocínio a partir de duas opiniões que valem a pena, pelo nível de inteligência e de probidade de seus autores. A maneira peremptória e radical como eles se manifestam também é um desafio interessante a quem pensa diferente. E convenhamos, meus colegas: esse é o momento de todos se manifestarem. Omissão agora não, pelo amor de Deus!

Não pretendo elaborar nenhuma tese sobre o tema, posto que nem tenho cabedal para isso, mas apenas rebater um e outro ponto que considero mal entendidos, mal colocados, mal interpretados. E o principal deles, na minha opinião, é o argumento segundo o qual é preciso garantir liberdade de expressão a todos. Esse é o argumento de nove entre dez pessoas contrárias à exigência do diploma e, pelo que li, foi também o que motivou a votação – oito contra um – no Supremo Tribunal Federal.

Considero essa colocação um engano magistral. Estão confundindo liberdade de expressão com exercício profissional. Basta invertermos o raciocínio para constatarmos que se trata de uma premissa falsa. Se a lei do diploma foi derrubada em nome da liberdade de expressão, significa então que há exatos 40 anos não temos liberdade de expressão no Brasil. Por essa tese, desde 1969, quando foi instituída a lei que regulamentou a profissão de jornalista, a liberdade de expressão nesse país é restrita. Valeria dizer, por conseguinte, que só agora, com a manifestação da principal corte, é que a tal liberdade foi resgatada.

Assim fosse, a decisão do Supremo deveria ser saudada por todos os democratas do mundo – inclusive e principalmente os jornalistas – como o fim de um período de trevas. “Brasil enfim garante liberdade de expressão!” deveria ser a manchete de todos os jornais, sites, blogs, no mundo inteiro. A ONU deveria divulgar nota oficial enaltecendo a medida, assim como a OEA e todos os organismos, públicos e privados, que prezam os direitos individuais e a democracia.

Lula, depois de transformar o Brasil de devedor em credor do FMI, convocaria o Grupo do Rio para anunciar outra grande vitória: em seu governo, em processo relatado por magistrado indicado por ele, esse grande país emergente finalmente instituiu a plena liberdade de expressão, mola mestra de uma verdadeira democracia. A Transparência Brasil ficaria exultante. Ao fim da votação no STF, a Rede Globo entraria com aquela famosa chamada extraordinária. Para imprimir a real importância do fato, com a música-tema de Ayrton Senna de fundo.

Uai, diríamos nós nesse pedaço paulista perto de Minas, mas a decisão do Supremo não foi tomada em prol da liberdade de expressão? Então é mais do que sensato concluir que a lei de 1969 fosse um entrave à liberdade de expressão no Brasil. A regulamentação profissional da atividade jornalística era, até então, uma restrição absurda, uma barreira, um cala-boca a todos os brasileiros que quisessem expor seus pontos de vista nos veículos de comunicação aqui sediados.

Percebem, pelo raciocínio invertido, o tamanho do absurdo que se apresenta? A lei que regulamentava – já estou colocando no passado – a profissão de jornalista no Brasil nunca foi restritiva à liberdade de expressão coisa nenhuma. Foram os próprios jornalistas, os bem intencionados, os verdadeiramente éticos, os profissionais que enaltecem a pluralidade, que buscavam e ainda buscam, entre a sociedade, gente que possa enriquecer um debate, que possa contrapor uma opinião dominante.

Essa é a verdadeira missão de um veículo de comunicação social: pluralizar o debate ao extremo, abrir as portas para todos os tipos de manifestação, permitir que se aflorem as mais variadas correntes de pensamento. E isso, meus caros, é feito justamente pelos jornalistas, muitas vezes contra a orientação dos próprios donos dos veículos em que trabalham. Então não me venham dizer que somos contra a liberdade de expressão.

Os bons jornais e revistas brasileiros, impressos e eletrônicos, sempre abriram suas páginas para os mais diversos profissionais de outras áreas. Advogados, médicos, economistas, gente das ciências agronômicas, da saúde, todos têm espaço, respeitando-se o foco editorial de cada publicação, seja pela encomenda de artigos específicos, pelas seções destinadas aos leitores ou pelas próprias entrevistas efetuadas.

O que a lei de 1969 preconizava é que o exercício do jornalismo – ou seja, a busca de informações, a redação de reportagens, a reportagem-fotográfica e cinematográfica, a pauta dos assuntos a serem abordados, a revisão, a edição das matérias, toda essa complexa atividade, exercida nas redações, fossem realizadas por profissionais formados para esse fim. Jamais, corporativamente falando, colocamos obstáculos à livre manifestação de pensamento. Aliás, se houve obstáculos, esses foram colocados pelos donos dos veículos ou por jornalistas mal intencionados, e não pela grande parcela de profissionais que nele trabalhavam e trabalham.

Se há pouca liberdade de imprensa no país, que o doutor Gilmar Mendes e quem de direito tratem de aglutinar outros setores para a discussão, porque, a esse debate, nós, jornalistas, nunca nos furtamos e nem nos furtaremos. Será que, para a sociedade, está bem esclarecida a diferença entre jornalistas e donos de veículos? Será que a sociedade sabe que para possuir um veículo não é preciso ser jornalista? Sabe a diferença entre um jornalista e um dono de jornal? Sabe a diferença entre abrir um jornal impresso ou uma emissora de rádio e TV?

Será, doutor Gilmar, que os outros setores envolvidos na tal liberdade de expressão vão querer participar desse debate? O senhor sabe quantas rádios e emissoras de TV estão nas mãos de deputados, senadores e outros quetais? Sabe Vossa Excelentíssima que a grande parte dos legisladores – a quem, conceitualmente, mais interessa a liberdade de expressão – tem concessões e as tem de modo irregular? A sociedade sabe como se dá, na real, a concessão desses veículos? A sociedade que o senhor representa em altíssimo grau, doutor Gilmar, sabe em que condições essas concessões são hoje atribuídas?

Se querem derrubar a exigência do diploma para o exercício profissional, então diga-se claramente que é seu o desejo de que qualquer cidadão neste país possa escrever para jornais, rádios e TVs, mas não me digam que a lei foi derrubada para garantir a liberdade de expressão. Essa é uma miopia que desvirtua o debate, que põe uma grossa cortina de fumaça aos olhos da sociedade, que escamoteia a questão – como dizíamos nos tempos de movimento estudantil. Não há profissional na face da Terra mais interessado em ampla liberdade de expressão do que um jornalista com vergonha na cara.

O que a lei de 1969 garantia, meus caros leigos adversários do diploma, é a regulamentação da profissão. Sim, porque, se vocês não sabem, jornalista é trabalhador. Jornalista não é um ser que passa as horas viajando na maionese em busca de uma sacada extraordinária, elocubrando por semanas a fio, em suas confortáveis residências, temas e manchetes que farão a delícia dos leitores e espectadores. Jornalista é gente que tem hora para tudo: para entrar no trabalho, para sair, para cumprir tarefas, para respeitar convenções profissionais.

Jornalista é gente, gente que trabalha, que pega ônibus, que almoça fora de casa, que muitas vezes tem dois empregos para se sustentar com dignidade. E gente assim, meus amigos, tem de receber salário, tem de ter jornada de trabalho definida, tem de ter piso salarial, tem de ter convenção coletiva de trabalho estipulando uma montanha de deveres e direitos, como férias, hora extra, plano de cargos etc. Como um metalúrgico, um bancário, um atendente de balcão. Igualzinho.

A diferença é que trabalha com informação. E, para tratar essa informação, não basta saber escrever. Alguém aí já leu uma sentença judicial? Um inquérito policial? Esses também têm de saber escrever, mas ninguém cogitou sacar diploma de delegado e de juiz por causa de textos com ortografias estupradas, pronomes sequestrados, concordâncias assassinadas. Em relação à informação, meus senhores e minhas senhoras, é preciso saber onde buscar, como buscar, como tratá-la, em seu aspecto técnico e ético também.

Portanto, não basta a alguém que saiba escrever querer aventurar-se a exercer as atividades jornalísticas. Isso seria suficiente para se redigir um artigo. Para entrevistar alguém, é preciso saber fazer isso, para que todas as questões sejam abordadas, para que todos os lados de um assunto sejam contemplados e a informação chegue à sociedade da maneira mais límpida e honesta possível. Para fazer uma boa foto, é preciso muito talento. Para editar uma matéria, impressa ou eletrônica, é preciso conhecer as ferramentas – técnicas e éticas – deste ofício. Para se pautar uma equipe de jornalistas é preciso, sim, um feeling que talvez um engenheiro ou um arquiteto também tenha, mas um domínio e uma compreensão do ritual jornalístico que outro não tem. Enfim, enquanto o balconista lida com roupas, calçados, gêneros alimentícios, sacaria, fertilizante ou arroz a granel, os jornalistas lidam com informação. E é preciso estudar para isso.

As faculdades são ruins? O ensino de jornalismo é ruim? Claro que é. Mas ao invés de melhorá-lo – em tese, isso sim, é de interesse de toda a sociedade –, vamos enfraquecê-lo? Para curar a enxaqueca, vamos cortar a cabeça do paciente? Essas são questões nas quais eu nem queria tocar, por entender que são absolutamente menores, como o argumento de que “ah, mas eu vejo tanto jornalista escrever mal, falar errado, dar informação errada...” Meus caros, se formos tirar a exigência do diploma de todo profissional que erra, convenhamos, vamos implodir todas as universidades, né? Da Contabilidade à Física Nuclear, do Direito à Medicina, das Letras à Mecatrônica, não vai sobrar um curso de pé.

Culpam-nos por supostamente defender reserva de mercado. Vamos discutir mercado, então. Primeiro: a quem interessa o fim do diploma? Se com a disseminação das faculdades particulares há um número absurdo de profissionais formados sem emprego, o que, por uma lógica de mercado, já enfraquece a condição salarial, pela grande oferta de mão-de-obra, imaginem então abrir as portas dessa atividade para cento e tantos milhões de brasileiros. Não é absurdo extrair disso tudo indícios claros de uma operação para “colocar no seu devido lugar” uma categoria cuja parcela significativa é uma pedra no sapato de poderosos – inclusive dos que sonham com terceiro mandato.

Não tenho a menor dúvida de que, depois do fim da exigência do diploma, virá um movimento gigantesco para derrubar a atual jornada de trabalho e achatar o piso salarial em cada Estado. Em nome da liberdade de expressão, vão surgir inúmeros “veículos” de mão e voz únicas recheados de caras ganhando quinhentão. E um alerta aos jornalistas talentosos, para quem, alega-se, nunca faltará emprego: vamos virar um país de jornalecos comandados por alguém talentoso ganhando bem e comandando um exército de zé-manés e lambe-botas brandindo uma carteira de jornalista.

Enfim, esse é um tema apaixonante que comporta inúmeras abordagens, mas seria ingenuidade sem tamanho tirá-lo de um contexto maior, sobretudo político e econômico. Minha única preocupação, nesse momento em que o tema ainda está fervilhando, é evitar que as pessoas confundam alhos com bugalhos – como liberdade de expressão e exercício profissional. E dá pra perceber que tem muita gente deliberadamente interessada nessa confusão. Eu, de minha parte, só queria entender por quê.

11 comentários:

  1. Também assino embaixo. Por onde vc anda?

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  2. De férias em Guará, Nelsinho, debaixo da saia da mãe, entre frangos caipiras de molho, cervas e Tião Carreiro, até resolver voltar pra aí. Abração.

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  3. Rogê, brilhante! O seu texto e a clareza de seus argumentos me fazem pensar que você só pode ser da turma 84/1 da UEL (rs). beijos

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  4. Rogério, gostei muito do seu artigo...claro como água.O que me incomoda nesta história de extinguir-se a validade do diploma é que isto ratifica a picaretagem..não é de hoje que qualquer malandro ou socialite pode fazer entrevistas na TV, bancando o/a jornalista sem informação, agora então...abriram a porteira. E haja estômago para engolir tanta asneira.
    Pior é que falta massa crítica, não diria no Brasil, mas no mundo contemporâneo, ninguém discerne mais o bom do ruim, a qualidade da falta de competência. Então qualquer babaca com microfone ou gravador na mão vira "homem de imprensa"...retrocedemos e eu morro de vergonha deste aviltamento...A gente sabe a quem interessa jogar fora o diploma. A quem quer pagar pouco, cada vez menos, e não está nem aí para o que se publica. O olho da imprensa tá no lucro, viramos "produto". Mas sua análise vale!! Um beijo. Vou linkar seu blog...no Sensível Desafio.

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  5. Aí Rogério:

    Tião Carreiro e galinha caipira! Que inveja, aqui só temos as galinhas da cidade e a música é de bate estaca!
    Fico grato em você respeitar nossa opinião, mesmo eu sendo corintiano!
    Coloquei um link para você no Magna Curitiba.
    Abraço, avisa quando passar por aqui. Em setembro já começa a dar praia. Inté.

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  6. Positivo e operante, Zé. Mas você ainda está me devendo seu e-mail, para trocarmos figurinhas. Abração.

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  7. Também faço a separação do joio do trigo, tal qual você. Com as mesmas alegrias, agruras e ressalvas. Seu artigo será todinho publicado na Agência Amazônia. Um abraço.

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  8. Caríssimo Rogê:

    Seu artigo combina três qualidades raramente conciliáveis: é longo, é bom e defende uma tese errada.

    Noutra hora voltamos a debater o assunto.

    Mas escrevo esse comentário para comentar o título: um dos melhores que eu li ultimamente. Na mosca. Parabéns.

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  9. Debateremos sim, Paulo Antônio, de preferência engruvinhados num seboso balcão, ao lado de Playmobil, Pafa, Ranulfo e outras más companhias. Beijo na Rô.

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  10. Amigo
    Você matou a pau esta discussão em torno do fim do diploma. Concordo com você em gênero, número e grau e já travei bate-bocas acalorados com gente que insiste em misturar o alho da regulamentação profissional com o bugalho da liberdade de expressão. O que me causa espanto é ouvir tanta gente que podemos qualificar de inteligente, instruída e com conteúdo usar o argumento da liberdade de expressão para defender um ato que, definitivamente, vai sepultar uma categoria profissional que, como todas as outras, tem profisisonais pouco habilitados sim, mas que abriga gente mais do que capacitada e que coloca em prática o objetivo maior do jornalismo, que é justamente levar ao limite a liberdade de expressão. Quem defende a medida do Supremo Tribunal Federal como solução para a liberdade de expressão, deve aprofundar seus conhecimentos e procurar saber quem são as pessoas que historicamente se esconderam atrás do lobby contra o diploma e que agora sairam vencedoras da batalha.
    Valeu!
    R. Daefiol

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